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Estereótipos conservadores prevalecem em personagens femininas de e-books mais vendidos no Brasil, aponta estudo


Estereótipos conservadores prevalecem em personagens femininas de e-books mais vendidos

Com preços acessíveis e histórias de amor, os e-books mais vendidos na plataforma Amazon Brasil conquistam legiões de leitores, chegando a receber centenas de comentários no próprio site em poucos dias. No ranking de livros digitais mais consumidos, aparecem as narrativas escritas por mulheres e lidas principalmente por mulheres.

🔎 Olhar para como as protagonistas femininas são representadas neste mercado independente foi uma das propostas da pesquisa realizada por Priscila Siqueira, doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professora substituta no Departamento de Letras Vernáculas da UFC.

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O resultado foi uma constatação sobre os estereótipos destas personagens: embora imersas em um contexto de conquistas progressistas, elas trilham caminhos vinculados a uma visão conservadora sobre o papel da mulher na sociedade.

Em comum, as histórias trazem mulheres em alguma situação de vulnerabilidade e que conhecem um homem poderoso, tendo o amor romântico e as funções de noiva, mãe ou esposa como principais caminhos para a felicidade.

A tese de doutorado, defendida em agosto deste ano, analisa que os livros digitais mais vendidos na plataforma repetem um roteiro “cinderelesco”, com protagonistas femininas em estruturas similares às dos contos de fadas.

Como a pesquisa foi feita

Pesquisa analisou e-books que chegaram ao ranking de mais vendidos na plataforma Amazon Brasil

Freepik

De agosto a novembro de 2024, a pesquisa coletou 15 títulos que chegaram ao primeiro lugar como os mais vendidos na seção de e-books da Amazon Brasil. Alguns deles estavam classificados como comédia romântica e romances eróticos.

📚 Após um refinamento para não repetir autoras e trazer narrativas diferentes, quatro destes livros foram escolhidos e analisados após uma leitura crítica. São eles:

“A Esposa Indesejada do Príncipe”, de D. A. Lemoyne

“Azar no Altar”, de Maria Isabel Mello

“A Conquista do Mafioso”, de Ary Nascimento

“Vicenzo”, de Cecília Turner

Em seguida, a pesquisadora analisou como a imagem destas protagonistas femininas é projetada no decorrer destes livros.

A pergunta era se haveria prevalência de imagens vinculadas ao papel da mulher na sociedade sob uma visão mais progressista (associada à inserção no mercado de trabalho e à autonomia) ou mais tradicional (associada às funções sociais como esposa, mãe e cuidadora).

“Partindo dessa pluralidade de ideologias, o que a gente queria ver era: qual era a predominância dessa imagem passada? Seria de uma mulher empoderada ou de uma mulher mais conservadora? E o que aconteceu: a gente acabou achando esse paradoxo”, detalha Priscila Siqueira.

Conforme a pesquisadora, as obras retratam estereótipos ligados ao ideal feminino tradicional de virtude, mesmo revestidos de ideais feministas de independência e empoderamento.

Priscila tem proximidade com o tema por conta de experiências pessoais como influencer literária desde 2011, tendo atuado também como revisora de livros literários de autores independentes e em outras funções no mercado editorial.

Na vida acadêmica, as experiências de Priscila vieram das pesquisas anteriores e da participação no Grupo de Estudos em Linguística e Discurso Autobiográfico (Gelda).

Um olhar para o mercado independente

A pesquisadora Priscila Siqueira analisou representação das personagens femininas nos e-books mais vendidos no Brasil

Viktor Braga/UFC Informa/Divulgação

A lista de e-books mais vendidos na Amazon é totalmente diferente do ranking de livros, explica Priscila. Enquanto as listas de publicações tradicionais trazem autores clássicos ou vinculados a editoras, os formatos digitais dão destaque para obras escritas em processos mais simples.

“Hoje, qualquer mulher e qualquer pessoa pode escrever um livro, postar na Amazon e se tornar uma autora independente. [...] Algumas dessas autoras divulgam que têm 4 ou 5 milhões de páginas lidas, então elas têm um público engajado e que se vê naquelas narrativas”, comenta a pesquisadora.

A ideia foi trazer o olhar científico para um tema ainda pouco explorado: as narrativas que movimentam uma comunidade engajada fora do mercado tradicional.

“Foi a partir disso que a gente pensou: por que não levantar esse perfil? Por que não levantar o ethos feminino que está sendo registrado hoje na literatura contemporânea independente?”, explica.

Enquanto acompanhou o ranking de e-books mais vendidos, ela observou que estas listas eram dominadas por autoras brasileiras. São mulheres sendo lidas por mulheres. O público feminino também é maioria na seção de comentários sobre cada e-book na plataforma.

Os estereótipos femininos

Estruturas analisadas nos e-books reforçam papel feminino semelhante aos dos contos de fadas

Alamy

Algumas características se destacaram nos títulos analisados na pesquisa: as histórias não se passam no Brasil, mostrando uma predileção pelas culturas estrangeiras, e envolvem relacionamentos amorosos entre mulheres com homens bem mais ricos que elas.

“A gente sempre tinha uma mulher em estado de vulnerabilidade. E a gente chamou de uma ‘estrutura ‘cinderelesca’, que é aquela da Cinderela, do conto de fadas, da ‘gata borralheira’ que está em uma situação de vulnerabilidade ou se coloca em uma situação de vulnerabilidade”, explica Priscila.

Um exemplo é o enredo de “A Esposa Indesejada do Príncipe”. Nele, a protagonista é uma estudante com problemas financeiros e que acaba sendo sequestrada e leiloada nos Emirados Árabes.

A história se desenvolve quando ela é salva ao ser ‘comprada’ por um príncipe poderoso e passa a conviver com ele em um casamento de fachada. O desafio que se apresenta para essa mulher, em seguida, é conquistar o amor do príncipe.

➡️ Na análise, foi importante também identificar como a imagem da mulher se altera dentro de cada história. O resultado foi ver que a superação dessas vulnerabilidades e a conquista da felicidade passavam sempre pela relação amorosa com um homem.

Os e-books analisados trouxeram sempre romances heteronormativos entre mulheres que conheceram homens com poder econômico muito maior. Estes personagens masculinos também detêm o poder de tomar decisões em suas comunidades, como príncipes ou chefes da máfia.

➡️ Outro aspecto observado é a forma como essas mulheres são descritas ou como falam sobre si mesmas nas histórias. Alguns pontos de destaque são:

A valorização da beleza física da mulher. Mesmo quando a protagonista não se enxerga como bela, ela é vista como desejável pelo homem.

As virtudes de uma mulher pura, ingênua, que passa por algum tipo de abandono ou sofrimento e que é valorizada por ter os atributos para ser uma boa mãe e esposa.

A tese chama atenção, também, para a literatura como elemento que constrói e representa papéis sociais, sendo capaz de influenciar e ser influenciada pela realidade. Desta forma, o olhar se volta para quais ideologias são reforçadas neste recorte da literatura contemporânea.

Como enfatiza Priscila, a pesquisa científica não pretende fazer julgamentos sobre os caminhos escolhidos pela mulher na sociedade.

No entanto, os dados do estudo mostram que as narrativas mais vendidas repetem um modelo associado a um ideal conservador, de vincular a felicidade feminina ao casamento e à maternidade, sem considerar outras trajetórias possíveis.

“Apesar de virem de mulheres modernas, muitas vezes, empoderadas, [essas narrativas] reforçam aquilo que o sistema patriarcal impõe. Muitas vezes, se a mulher escolhe um caminho diferente, ela é rebaixada, é julgada. Muita gente diz: ‘ah, mas é só um livro’. Mas são construções que a gente acaba aprendendo a privilegiar ao invés de outras estruturas”, ressalta Priscila.

Ela ilustra que os contos de fadas, como primeiras histórias geralmente transmitidas às crianças e como modelo ainda replicado, tendem a mostrar como vilãs as bruxas — mulheres mais independentes e que fogem dos padrões sociais aceitos.

Outros caminhos possíveis

Priscila Siqueira é doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC)

Viktor Braga/UFC Informa/Divulgação

A ficção contemporânea que traz outras perspectivas e abordagens para personagens femininas também tem uma produção forte no Brasil. E-books com representações de ideais mais progressistas também engajam comunidades e nichos no mercado independente, aponta Priscila.

“A gente tem uma pluralidade de narrativas. Temos autores que vão para romances LGBTQIAPN+, temos protagonistas sáficas, protagonistas trans, protagonistas pretas que vieram da favela e batalham… A gente tem uma infinidade de outros perfis disponíveis. Mas eles não chegam ao ranking”, destaca.

A pesquisadora aponta que um possível próximo passo é fazer novas perguntas sobre os e-books mais vendidos.

Por que existe a predominância da mesma estrutura narrativa? Quem é o público que consome os e-books e por que ele se engaja tanto com estas histórias? Estes são exemplos das questões que poderão nortear novas análises sobre o tema.

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