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História e legado: museus orgânicos do Cariri preservam o passado e inspiram o futuro


Instituto do Mestre Antônio Linard é um dos museus orgânicos do Cariri.

Arquivo pessoal/Museu Linard

No Cariri os museus orgânicos preservam histórias vivas — de mestres, de famílias, de comunidades inteiras. São 17 espaços espalhados por oito municípios, cada um com sua própria alma, sua própria voz.

Esses museus não nasceram para serem silenciosos. Eles respiram cultura, acolhem visitantes, ensinam crianças e emocionam quem passa. São casas que viraram memória, terreiros que viraram sala de aula, oficinas que viraram patrimônio. E cada um deles carrega um legado que ultrapassa gerações.

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“São legados para filhos, netos, amigos e turistas. Um projeto que deu certo no Ceará e que está servindo de espelho para outros estados”, afirma com orgulho o superintendente do Sistema Fecomércio, Henrique Javi.

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A quarta reportagem da série publicada pelo g1 sobre os museus orgânicos do Cariri traz como os mestres da cultura influenciaram a história de suas cidades e como seus legados continuam vivos — não apenas nos objetos expostos, mas nas experiências de quem visita, aprende e se emociona. Confira:

Casa que virou história: o museu onde nasceu a emancipação de Nova Olinda

Maria Pereira Lima, de 84 anos, filha do mestre Jeremias, um dos responsáveis pela emancipação de Nova Olinda, no Ceará.

Hélio Filho

No centro de Nova Olinda, uma casa simples guarda um capítulo decisivo da história do município. Foi ali, na década de 1950, que Antônio Jeremias Pereira reuniu lideranças, fez acordos e plantou as sementes da emancipação política do então distrito, que pertencia a Santana do Cariri.

“Vieram convidar ele pra ser prefeito de Santana do Cariri, pra trazer a paz. E ele disse que só aceitaria se ajudassem a emancipar Nova Olinda. Quando tomou posse, já deu andamento. Em abril do ano seguinte, Nova Olinda virou cidade”, conta com orgulho Maria Pereira Lima, de 84 anos, filha do mestre Jeremias.

A casa, restaurada em 2017, se transformou no Museu Orgânico Casa de Antônio Jeremias Pereira, parte do projeto do Sesc Ceará que ressignifica espaços de memória viva. Hoje, três cômodos dividem o legado: a história da família, a trajetória política da cidade e os objetos que marcaram gerações.

A casa, restaurada em 2017, se transformou no Museu Orgânico Casa de Antônio Jeremias Pereira.

Hélio Filho

São fotos, documentos, utensílios domésticos e móveis que testemunharam encontros e negociações. Cada peça tem uma história — e cada história ajuda a entender como Nova Olinda se tornou o que é hoje.

“Tem gente que nasceu e se criou aqui e não conhecia essa história. A partir do museu, passaram a conhecer. Os próprios alunos da cidade vêm me visitar”, conta Maria, emocionada.

Mais do que um espaço de exposição, o museu é um ponto de encontro com o passado. Um lugar onde a política se mistura com afeto, e onde a memória ganha voz através de quem viveu — e ainda vive — cada detalhe.

O inventor do sertão: mestre Françuli e os aviões que nasceram do sonho de voar

Mestre Françuli apresenta o museu-oficina onde constrói as miniaturas de aviões

No céu do sertão cearense, um avião cruzou o horizonte e mudou a vida de um menino. Francisco Dias de Oliveira, hoje conhecido como mestre Françuli, tinha apenas seis anos quando viu pela primeira vez uma aeronave sobrevoando o sítio Marmeleiro, em Potengi. Naquele instante, nasceu um sonho — e uma história que hoje é patrimônio vivo do Ceará.

“Eu dizia a meu pai: eu vou trabalhar pra fazer uma história, pra deixar pra quando eu morrer”, lembra o mestre, aos 84 anos, com a voz firme e o olhar ainda cheio de planos.

Em 2016, ele foi reconhecido como Tesouro Vivo da Cultura do Ceará. E não por acaso: desde os anos 1960, Françuli desenha e constrói aviões de todos os tamanhos e formatos, usando madeira, flandre e, mais recentemente, zinco.

Desde os anos 1960, Mestre Françuli desenha e constrói aviões de brinquedo, usando madeira, flandre e, mais recentemente, zinco.

Arquivo pessoal

Sem nunca ter visto uma aeronave de perto, ele criou os primeiros moldes apenas com a imaginação. A técnica foi se aperfeiçoando com o tempo — e com a experiência. O sonho de voar se realizou depois dos 60 anos, quando embarcou pela primeira vez rumo ao Amapá.

“Quando eu entrei no avião, olhei pra cima, pro lado, achei bom quando ele subiu. É o poder de Deus”, conta, emocionado.

Hoje, o desejo é outro: “Eu sou apaixonado por tudo que voa. Já andei de asa-delta, de ultraleve, mas nunca de helicóptero. Tenho vontade.”

O museu que leva seu nome foi inaugurado em Potengi em 2018 , mas por questões de saúde, Françuli precisou se mudar para o Crato. E junto com ele, os aviões. Muitos visitantes aparecem de vários estados e até de fora do país para conhecer as peças.

O espaço criado por Mestre Françuli, abriga dezenas de miniaturas de aviões — algumas inspiradas em modelos reais.

Arquivo pessoal

O espaço, que ele começou a montar aos 36 anos, abriga dezenas de miniaturas — algumas inspiradas em modelos reais. Há também uma moto feita de sucata, fotografias, ferramentas e uma réplica do próprio mestre, esculpida por artesãos do Centro Cultural Mestre Noza.

E a história, de fato, está lá — tal como Françuli sonhou aos seis anos. No sertão, onde tudo parece longe, mestre Françuli provou que o céu pode estar ao alcance das mãos e da imaginação.

O mestre dos mosaicos: a arte dos ladrilhos hidráulicos que transformou a vida de mestre Jaime

Mestre Jaime trabalha na fabricação artesanal de ladrilhos hidráulicos, também conhecidos como mosaicos, em Barbalha, no Ceará..

Claudiana Mourato/Sistema Verdes Mares

Em Barbalha, no sul do Ceará, uma pequena peça quadrada e colorida mudou o destino de uma família inteira. Aos 83 anos, Jaime Antonio Rodrigues — o mestre Jaime — carrega nas mãos a memória de um ofício milenar: a fabricação artesanal de ladrilhos hidráulicos, também conhecidos como mosaicos.

Desde 1960, ele molda cimento, pigmento e tradição em peças que hoje estampam calçadas, igrejas e casas em várias partes do mundo. Em 2017, foi reconhecido como Mestre da Cultura do Ceará, e sua oficina, nos fundos da casa onde mora com a família, virou um verdadeiro museu orgânico — símbolo da resistência e da beleza que brota do Cariri.

“Comecei aos 17 anos, como empregado. Deixei a roça e fui aprender a fazer ladrilho. Em 1985 montei minha própria fábrica. E até hoje, tudo é feito do mesmo jeito”, conta o mestre, com orgulho.

O processo é delicado e exige paciência. Primeiro, o molde é colocado na forma. Depois, o pigmento colorido é distribuído conforme o desenho. Em seguida, vem a massa — uma mistura precisa de cimentos e areias. A prensa, ainda a mesma da década de 60, dá forma à peça, que descansa por horas antes de ser mergulhada na água. Só depois de quatro dias de secagem na sombra, o ladrilho está pronto para ser transportado.

Essa arte, reconhecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio cultural, é mais do que decoração. É memória afetiva, símbolo de fé, herança familiar. “O ladrilho revela brasões, selos, trechos bíblicos. Ele carrega história e dura mais de um século”, afirma o órgão.

Mestre Jaime trabalha na fabricação artesanal de ladrilhos hidráulicos, também conhecidos como mosaicos, em Barbalha, no Ceará..

Claudiana Mourato/Sistema Verdes Mares

Hoje, filhos e netos de mestre Jaime mantêm viva a tradição. Um deles, Cícero José Rodrigues, assumiu a frente do negócio após o pai adoecer. “A gente está vendendo bastante, muita gente procurando. Já mandamos pro Rio, São Paulo, Bahia. É um orgulho ver que a arte do meu pai tem futuro”, diz.

O espaço é um dos poucos com essa forma de trabalho no país e foi transformado em museu orgânico em agosto de 2025, o último a ser inaugurado.

"Aqui é um museu simbólico, com três gerações em torno da arte. Mestre Jaime representa através da sua arte, conhecimento a principal característica de um museu orgânico. De poder passar isso para as outras gerações e também firmar aqui essas raízes profundas. O Cariri tem essa característica especial também”, destaca Henrique Javi, superintendente do Sistema Fecomércio.

Em cada ladrilho, há mais do que cor e forma. Há tempo, memória, afeto. E a certeza de que, mesmo diante das mudanças do mundo, algumas tradições seguem firmes — como o cimento que sustenta a história de mestre Jaime.

"Eu nunca esperei uma homenagem dessa na vida. A gente trabalha, tem fé em Deus, mas não espera essas homenagens tão bonitas. Eu não esperava isso não. Eu quase caminhei de alegria sem o cavalete"disse, emocionado, ao receber o título da Casa Museu Fábrica Mosaico de Mestre Jaime.

Telma Saraiva: a mulher que pintou o Cariri com luz, cor e memória

Telma Saraiva foi a primeira fotopintora do Nordeste.

Claudiana Mourato/SVM

No coração do Crato, uma casa histórica guarda mais do que paredes antigas e móveis de época. Ela abriga o legado de Telma Saraiva, a primeira fotopintora do Nordeste, uma mulher à frente do seu tempo que transformou o ato de fotografar em arte e memória.

Telma nasceu com o olhar voltado para a imagem. Filha de artistas, desenhava com realismo desde a adolescência e, nos anos 1940, descobriu a fotopintura — técnica que une fotografia e pintura manual. Por décadas, retratou artistas, políticos, religiosos, estudantes e ela mesma. Criou um acervo que hoje é patrimônio material e imaterial do Cariri.

A casa onde viveu, no centro do Crato, virou museu orgânico graças ao projeto do Sesc Ceará e ao empenho da família.

“Era o sonho dela. Hoje somos nós, filhos, que contamos essa história. A gente vivenciou tudo isso. E esse museu se confunde com a história da cidade porque vários momentos importantes foram decididos por pessoas nessa casa. Eram pessoas que trabalhavam com arte, cinema, esculturas tudo. Várias decisões culturais foram tomadas aqui”, diz um dos filhos, Ernesto Rocha.

A Casa de Telma Saraiva reúne obras, instrumentos de trabalho e objetos pessoais da família e de outros fotógrafos do Cariri.

Paulo Henrique Rodrigues/Sistema Verdes Mares

O espaço reúne obras, instrumentos de trabalho e objetos pessoais da família e de outros fotógrafos do Cariri. Uma das peças mais procuradas é uma câmera centenária que registrou a passagem de Lampião por Juazeiro do Norte em 1926. Há também fotos raras de Luiz Gonzaga, que veio ao Crato para ser retratado por Telma. “Ela fez quatro fotos, quando costumava fazer no máximo três. Ele nunca veio buscar. O retrato ficou guardado por mais de 50 anos”.

Telma também era apaixonada por cinema. O Crato foi um dos primeiros municípios do interior a ter uma sala de exibição, em 1911. Inspirada pelas mulheres que via na tela, ela pintou autorretratos que hoje ocupam uma parede inteira do museu.

“Sua história é muito forte. Uma mulher no interior do Ceará, chefe de família, dona do próprio negócio, que criou os filhos sem depender de ninguém. Existe a fotopintura — e existe a fotopintura de Telma”, afirma um dos curadores.

Museu Casa de Telma Saraiva, no Crato.

Claudiana Mourato/Sistema Verdes Mares

O legado de Telma tem sido reconhecido por colecionadores, instituições e pesquisadores. Mas, para a família, a maior galeria dela está espalhada pelas casas das pessoas. “A gente não tem noção da quantidade de retratos que ela fez. Cada foto marcou um momento. Às vezes, alguém aparece com uma imagem feita há 50 anos”.

O museu também virou espaço de encontros. Oficinas, projeções e musicais acontecem no jardim, e os visitantes são recebidos por quem viveu ali. “Você tá aqui com quem conhece cada cantinho. A conversa vira aula de história. O Crato teve luz elétrica antes da capital. O museu é uma viagem no tempo”, diz Ernesto Rocha, que ajuda a manter o espaço vivo.

Telma Saraiva faleceu em 2015, aos 86 anos. Ela não apenas fotografou o Cariri — ela o pintou com luz, cor e afeto. E sua obra continua revelando o que há de mais bonito: a força de uma mulher que fez da imagem um instrumento de eternidade.

Museu Linard: o mestre que forjou a história da indústria no Cariri

Mestre Antônio Linard transformou uma oficina modesta em um dos maiores complexos industriais, em Missão Velha.

Arquivo pessoal/Museu Linard

Em Missão Velha, no sul do Ceará, o ferro não é apenas matéria-prima — é memória e legado. Foi com ele que Mestre Antônio Linard moldou não só máquinas, mas também o futuro de uma cidade inteira. Autodidata e visionário, ele transformou uma oficina modesta em um dos maiores complexos industriais do Ceará.

Nascido em Santana do Cariri, Linard se mudou para Missão Velha ainda jovem. Começou como mecânico, consertando engenhos de cana-de-açúcar. Mas um episódio inusitado, em 1930, mudou sua trajetória: foi chamado por um dos cangaceiros de Lampião para montar um armamento que ninguém sabia operar. “Com o pagamento, comprou seu primeiro torno mecânico — um sonho antigo”, conta o historiador João Bosco André.

A partir dali, a oficina cresceu e virou o Complexo Indústria Linard, com 15 mil metros quadrados e quase 100 anos de história. Linard modernizou os engenhos da região, construiu o primeiro motor a vapor do Cariri e rompeu com a dependência tecnológica estrangeira. A fábrica passou a produzir máquinas agrícolas, equipamentos metalúrgicos e até sinos.

Hoje, o espaço abriga o Museu Linard, criado para visitação pública. Um dos destaques é o Parque das Máquinas, com peças antigas fabricadas ali mesmo — incluindo um forno que pertenceu a Padre Cícero. “Esse forno foi vendido para ele, mas não funcionava bem. Meu avô reconstruiu”, conta emocionada Amélia Linard, neta do mestre.

Um dos destaques do Museu Linard é o Parque das Máquinas, com peças antigas fabricadas ali mesmo.

Arquivo pessoal/Museu Linard

A história de Linard é também a história da força criativa do sertão. Um homem que, com as próprias mãos, construiu soluções, gerou empregos e deixou um legado que atravessa gerações. Desde sua morte, em 1983, a família mantém viva a memória e o funcionamento da indústria — agora também como espaço cultural.

"A visitação é importante para que eles conheçam como a indústria se transformou ao longo dos anos. E também os equipamentos, como surgiram. É conhecimento técnico, geográfico e histórico. Ter acesso a informações que foram base para a inovação que temos hoje", reforça Amélia Linard.

Em Missão Velha, o ferro fala. E cada engrenagem do Museu Linard conta uma história de inventividade, resistência e orgulho nordestino.

Memória em movimento

Até o fim de 2026, pelo menos seis novos museus orgânicos devem ser reconhecidos.

Arquivo pessoal/Museu Linard

Os personagens e as histórias que tiveram a oportunidade de tornar-se um museu vivo representam uma parte de todas as vivências possíveis de serem encontradas no Ceará. Por isso, a proposta do projeto é ousada: criar pelo menos um novo museu orgânico por ano. Até o fim de 2026, seis novos espaços devem surgir — três deles no próprio Cariri. E o trabalho vai além da preservação.

“É muito importante que o cearense conheça o estado e essa dimensão que a museologia permite. Estamos atuando junto às escolas para que as crianças tenham aqui um espaço de aprendizagem e encantamento”, diz Henrique Javi, superintendente do Sistema Fecomércio.

No Cariri, museu não é lugar de silêncio. É lugar de festa, de fé, de resistência. E cada novo espaço que nasce é uma semente plantada para que as próximas gerações colham o que há de mais bonito: a força de um povo que nunca deixou de contar sua própria história.

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