Animal tentou defender criança e foi atingido pelo suspeito, que circulava de patinete pela Praça Alexandre de Gusmão e teria proferido xingamentos xenofóbicos contra a família. Situação de fragilidade levou a comunidade a se juntar para ajudar o grupo a sair da rua. Homem é acusado de xenofobia por estrangeiro e, em seguida, mata cachorra da família em SP
A Polícia Civil investiga o ataque a uma cachorra que vivia com uma família de imigrantes em situação de rua na Praça Alexandre de Gusmão, região dos Jardins, área nobre do Centro de São Paulo.
O animal foi morto a facadas por um homem de 23 anos e a família de vários países da América do Sul (Argentina, Equador e Colômbia) denunciou o rapaz ainda pelo crime de xenofobia.
Na segunda-feira (16), de acordo com testemunhas e o boletim de ocorrência registrado no 78º DP Jardins, o homem – Enzo Gianetti, de 23 anos –, que circulava de patinete pelo local, xingou as duas crianças do casal que mora em uma barraca. Em seguida, começou a discutir com o pai delas. O g1 tenta contato com Gianetti.
Durante a discussão, o acusado disse ao imigrante e aos filhos que eles não deveriam estar ali por serem estrangeiros – e que deveriam voltar para o lugar de onde vieram. Também fazia gestos de ameaça de morte para as crianças, ainda de acordo com o boletim de ocorrência.
O pai então acionou policiais militares que faziam ronda na praça, relatando as ofensas xenofóbicas. O rapaz foi revistado e, com ele, foi encontrada uma faca. Mesmo com as denúncias, ainda de acordo com o boletim, os PMs devolveram a faca ao suspeito e o liberaram.
Enzo Gianetti, de 23 anos, é acusado de matar a cachorra de uma família em situação de rua na região dos Jardins, no Centro de SP.
Acervo pessoal
Cerca de uma hora mais tarde, o suspeito retornou ao local, armado com a faca, e avançou sobre o filho do casal. Para proteger a criança, a cachorra, chamada Pandora, partiu para cima do agressor e foi esfaqueada por ele, dizem as testemunhas.
O animal foi socorrido por pessoas que estavam no local e levado para a Faculdade Veterinária Anhembi Morumbi, mas não resistiu aos ferimentos.
O suspeito fugiu, e seus dados foram obtidos com a empresa que alugou o patinete que ele usava.
A PM voltou ao local, e a mãe das crianças, Daniela Ayelen Vera, registrou o boletim de ocorrência. Devido à morte da cachorra, o homem responderá pelo crime de praticar ato de abuso a animais (art. 32 da lei 9.605/98, a Lei de Crimes Ambientais).
A pena prevista é de dois a cinco anos de reclusão, multa e proibição de guarda, quando se tratar de cão ou gato.
Testemunhas
Daniela Ayelen Vera – mãe das duas crianças – e o aposentado José Carlos, que presenciou as agressões e a morte da cadela.
Reprodução/Redes Sociais
Em vídeo publicado nas redes sociais, a mãe das duas meninas – Daniela Ayelen Vera – contou que o rapaz chegou na praça onde a família vive e começou a gravar as duas crianças. No que ela disse que Enzo Gianetti não podia gravar os filhos, o rapaz iniciou uma discussão e sacou uma faca.
“Ele veio três vezes com uma faca aqui na praça nos ameaçando. Na terceira vez chegou muito perto do meu filho. Então, a cachorra que nós cuidávamos saiu em defesa da criança e esse rapaz deu uma facada na cachorra. Ela foi assistida por um morador e levada ao veterinário, mas ela não resistiu”, contou Daniela.
O aposentado José Carlos estava no momento da discussão e presenciou a agressão contra a família e a cachorra.
“Eu estava a pouca distância e vi perfeitamente. A discussão continuou quando o pai das crianças pediu para ele ir embora, e ele se levantou e correu atrás do pai em direção à [Alameda] Casa Branca com a Alameda Jaú. Foi quando foi chamado o carro de polícia, que conversou com ele. Não sei o que foi falado. Mas depois disso o menino voltou para a praça e continuou as ofensas”, contou.
“Parecia que estava tudo sossegado, mas o menino voltou de patinete e com uma faca e foi ameaçar o Juan, filho do casal. E foi para cima dele com uma faca. A Pandora, cachorrinha deles, começou a latir e ir pra cima dele. Ela defendendo o menino e nessa hora ele deu uma facada na cachorra”, narrou o aposentado.
Corrente de solidariedade
Família de estrangeiros que morava na Praça Alexandre de Gusmão, na região dos Jardins, em São Paulo.
Acervo pessoal
Por conta da fragilidade das crianças, os moradores do entorno da Praça Alexandre de Gusmão se uniram e resolveram ajudar a família.
Além de ajudar para que a família renovasse os documentos de estrangeiros no Brasil, eles arrecadaram cerca de R$ 1.500 para completar o dinheiro que eles precisavam para alugar um espaço e sair da rua.
"É uma família que está vivendo na rua desde abril. Nós conhecemos eles em 2023, quando chegaram no local e trabalhavam como artesãos. Eles conseguiram uma oportunidade em São Sebastião, no litoral, e viviam por lá. Mas algo deu errado que eles voltaram a viver aqui. Por conta da falta de documentação, não conseguiam alugar nada e estavam esses meses todos na rua. A gente já estava ajudando na regularização da documentação, mas esse episódio nos acendeu um alerta", contou a professora Daniela Campos, que coordena a ajuda à família.
"Como o rapaz voltou na última madrugada ao local, a gente ficou com medo de ele fazer algo com as crianças e a família. Então, conseguimos levantar o dinheiro e nessa noite mesmo eles vão se mudar para um pequeno apartamento na Bela Vista, onde vão poder recomeçar a vida", disse.
A família é multinacional: a mãe é argentina, a filha mais nova equatoriana, enquanto o pai e o filho mais velho são colombianos.
Os moradores que participaram da ação afirmam que ficaram encantados com a educação deles, apesar da situação difícil na rua.
“O pouco que vi me deixou muito triste. Cheguei aqui as crianças estavam chorando. A cachorra já tinha ido para o veterinário e sido esfaqueada pelo rapaz. Até falei para os policiais que essas crianças são de ouro. Nós aqui no Brasil não temos crianças que têm essa mesma educação”, contou a aposentada Claudete, que participou da arrecadação.
As duas barracas onde viviam a família estrangeira na Praça Alexandre de Gusmão, na região dos Jardins, em São Paulo.
Acervo pessoal
“São crianças encantadoras e muito educadas. Nem elas nem os pais nunca nos pediram nada. A gente ia passear na praça com os cachorros e, apesar de estarem na rua, elas sorriam e tratavam todos com muito encanto. A gente foi vendo que eles só precisavam de uma mão”, afirmou Daniela Campos.
“Na segunda ou terça eles chegaram a ir para um abrigo por causa do frio, mas não aguentaram ficar lá porque tinha percevejos e os banheiros estavam em petição de miséria de sujeira. Voltaram para a rua e aconteceu tudo isso. É uma tristeza ver uma família estruturada, que só está passando por um período difícil, estar sujeita a esses perigos na rua, sem ajuda concreta do Poder Público”, desabafou a professora.
O g1 procurou a Secretaria de Segurança Pública (SSP) para comentar as investigações do crime contra a família, mas não recebeu retorno até a última atualização desta reportagem.
Polícia Militar presta apoio à família que teve a cachorra morta na Praça Alexandre Gusmão, no Centro de São Paulo.
Acervo pessoal