G1

Santa Dica: saiba a história da mulher conhecida por curar enfermos, participar de revoluções políticas e criar povoado


Benedita Cipriano Gomes comandou exércitos, ouviu 'anjos' e conquistou uma legião de seguidores. Em 2025, esse legado completou 120 anos. Conheça a história de Santa Dica de Goiás

Entre o misticismo e a representação política, Benedita Cipriano Gomes ficou conhecida como Santa Dica de Goiás por curar enfermos, participar de revoluções e criar um povoado, denominado como Lagolândia, a cerca de 40 km de Pirenópolis. Em 2025, esse legado completou 120 anos e os seus seguidores e familiares lutam para que a história de Dica não seja esquecida.

Clique aqui e siga o perfil do g1 Goiás no Instagram

Em 13 de abril de 1905, na fazenda Mozondó, nasceu a menina que se tornaria uma figura emblemática, alvo de ceticismos e de devoções. Já no nascimento, foi marcado o início de uma história repleta de acontecimentos surpreendentes, pois ela foi considerada morta pela primeira vez - outras três ainda viriam, o que hoje a medicina entende como catalepsia, mas na época foram ressuscitações.

Ao longo dos anos, os seus feitos foram documentados por meio de documentários, filmes e livros. Um deles é de autoria da historiadora e escritora Waldetes Aparecida Rezende, de 64 anos, que se dedicou a documentar os passos de Dica. Ao se mudar para Lagolândia há quarenta anos, ela se deparou com diversos relatos que relembravam a existência de uma mulher mística.

De acordo com o livro “Santa Dica: História e Encantamentos”, após 24 horas do seu nascimento, quando a família enlutada se preparava para sepultar o corpo da bebê, ouviram um choro e perceberam: ela estava viva. Por serem devotos fervorosos de São Benedito, a filha do casal ganhou o mesmo nome do santo: Benedita.

Busto de Santa Dica, em Lagolândia

Yanca Cristina/g1 Goiás

Ao g1, Waldetes contou que sua sogra era comadre de Dica e o seu sogro motorista dela, o que os tornou seguidores devotos. Segundo a historiadora, a ideia de cursar história surgiu a partir da vontade de descobrir se tudo o que ouvia sobre a mulher que curou enfermos era verdade.

“Eu tive a oportunidade de fazer faculdade quando eu já morava aqui e não tive dúvida, eu quis história. Eu achava que era exagero o que eles contavam. [...] Fui pesquisar o que tinha de documento que comprovasse aquilo que eles contavam. Através de jornais, de certidões, pude comprovar grande parte do que era falado", destacou.

Após concluir a graduação, Waldetes escreveu o livro, o qual já vendeu mais de 3 mil cópias e está na sua terceira edição. A partir desse registro, diversos moradores de Lagolândia, desde os mais velhos ao mais novos, puderam compreender em detalhes a grandiosidade dos feitos de Dica e saber a sua importância para a existência do povoado.

Waldetes Aparecida Rezende, escritora do livro “Santa Dica: História e Encantamentos”

Yanca Cristina/g1 Goiás

Em Lagolândia, o g1 ouviu a moradora e dona de uma loja de artesanato, Maria das Dores Camargo, de 61 anos, que mencionou ter conhecido quem de fato foi a Dona Dica através das palavras de Waldetes, pois ainda era uma criança na época.

"Ela foi uma pessoa muito guerreira, que lutou muito por esse povoado. Acolhedora. Acolheu todo mundo que vinha de fora com comida, com oração e com benzimento", destacou a comerciante.

Cura, devoção e seguidores

Casa da Dona Dica, em Lagolândia

Yanca Cristina/g1 Goiás

Embora nunca tenha se considerado uma “santa”, foi assim que Dica ficou popularmente conhecida. A historiadora ressaltou que inicialmente essa denominação veio cheia de ceticismo dos jornais da época que noticiavam os diversos relatos de que ela curava pessoas e conversava com anjos e guias espirituais, como Rainha Silvéria, José Sueste, também chamado de Rei-de-Valia, e o comandante José Gregório, que foi morto em batalha.

“Na verdade, ela nunca se denominou santa e nem o povo. Era até uma forma de crítica, que os jornais a chamavam assim. A maioria era pejorativo, principalmente aqui no estado de Goiás”, ressaltou Waldetes.

O início das “curas” de Dica se dá ainda na infância, conforme pesquisado pela escritora. “Com dois anos, ela teve outro episódio de ausência, que para a medicina é chamado de catalepsia, e foi novamente considerada morta. Só que nessa segunda vez, ela começa a curar e conversar com anjos”, pontuou.

A notícia de que havia uma pequena garota que conseguiu curar as pessoas começou a se espalhar e chamou a atenção dos boiadeiros que viviam na região.

"É chamada de ‘Dica dos Anjos’, pois era constantemente pega conversando com seres invisíveis, que afirmava serem Anjos Celestes, pessoas que morreram ainda crianças, às vezes falava em outras línguas, curava através da imposição das mãos sobre a cabeça ou ferimento, outra vezes, levava o dedinho à boca molhando-o de saliva que passava sobre o ferimento em forma de cruz”, narra o livro “Santa Dica: História e Encantamentos”.

✅ Clique e siga o canal do g1 GO no WhatsApp

Em 1923, a jovem iniciou os “conselhos”, que eram reuniões realizadas no casarão de curas ou nas casas de algum dos seus seguidores, que já começavam a povoar o local. De acordo com a escritora, Dica banhava e se purificava, em seguida, se deitava em uma cama e ficava paralisada por minutos, momento em que começava a manifestação dos guias espirituais.

“Durante os transes, Dica ficava como morta, a voz saia de seu corpo, mas sua boca não se mexia, mudava de voz constantemente, conforme os guias se manifestavam, as luzas permaneciam apagadas durante a reunião”, relatou a seguidora Ilza Rezende para a historiadora.

Maria Camargo relatou que possui um caso de cura na família. Os pais, que moravam na roça, não possuíam condições de ir ao médico, mas ouviram falar sobre a Dona Dica e levaram o filho caçula, que estava adoecido, para conhecê-la.

"Minha família morava na roça e foi a primeira vez que eu ouvi falar dela. Meus pais trouxeram meu irmão aqui e ele foi curado por ela", contou ao g1. A partir deste momento, os seus familiares passaram a receber os benzimentos e os remédios caseiros sempre que precisavam.

Comerciante Maria das Dores Camargo, em Lagolândia

Yanca Cristina/g1 Goiás

LEIA TAMBÉM:

Conheça a história de três mulheres goianas que se tornaram mitos

Cervejaria Santa Dica: Conheça cerveja escura feita em Goiás que ganhou medalha de ouro em competição do Centro-Oeste

Revoluções: uma mulher à frente do seu tempo

Túmulo de Santa Dica, em Lagolândia

Yanca Cristina/g1 Goiás

Em 1925, Dica foi convidada a participar da passagem da Coluna Prestes por Goiás, um movimento político-militar brasileiro, mas a sua relação com o governo se tornou ainda mais complicada. “Eles expulsam ela de lá, falam para ela voltar para cá e mandar o povo todo embora”, contou Waldetes.

Neste mesmo ano, aconteceu o evento histórico que ficou conhecido como o “Dia do Fogo”, em que um batalhão de cerca de cem homens, militares e jagunços de coronéis da região, foram até o povoado e "metralharam as casas". Segundo Waldetes, os moradores já haviam sido avisados por Dica de que “choveria pedras do céu”, mas eles seriam protegidos por anjos.

Na ocasião, muitos seguidores fugiram pelas águas do Rio Jordão. Dica também foi dada como desaparecida e só foi encontrada três dias depois. A escritora apontou que, antes da fuga, houve relatos de que as balas direcionadas à mulher “caíam de seus cabelos como se fossem grãos de milho e não entravam no corpo dela”.

Os militares foram até o local dar voz de prisão à Dica e alguns de seus seguidores. Após se recuperar dos dias perdida no mato, ela se apresentou voluntariamente e se declarou inocente das acusações. No entanto, ela foi condenada, mas acabou cumprindo apenas alguns meses, na Cidade de Goiás, devido a pressão por parte dos seguidores e a repercussão do ataque e das mortes que ocorreram no local.

Em junho de 1926, ela foi solta com o compromisso de que seria levada pela Confederação Espírita do Rio de Janeiro. Meses depois, ela retornou ao estado acompanhada do jornalista Mauro Mendes, que depois se tornou o seu marido.

Em 1930, o casal teve uma pequena participação na revolução de Goiás, com o objetivo de acabar com a República Oligárquica, mas foi dois anos depois que Dica atingiu o seu auge, conforme pontuado pela escritora.

Dica foi convidada para participar da Revolução de 1932 por Getúlio Vargas e se tornou notícia no mundo todo. Na ocasião, comandou um exército, que dizem as lendas ter sido protegido por “anjos”. Ela conquistou uma influência política, o que levou o seu marido a ser prefeito de Pirenópolis duas vezes. No total, os dois tiveram cinco filhos e adotaram dois.

Brigitt e Bernarda Cipriano, sobrinha e irmã de Dona Dica, em Lagolândia

Yanca Cristina/g1 Goiás

Brigitt Cipriano, de 60 anos, é filha da única irmã viva de Dica, Bernarda Cipriano, de 97 anos (veja acima). Ao g1, ela mencionou que teve apenas cinco anos de convivência com quem chama de "Vó Dica". A sobrinha relembrou que, naquela época, as mulheres não tinham o direito ao voto, mas mesmo assim Benedita conseguiu criar o seu legado, que perdura no local.

"Aqui em Lagolândia tem uma liderança muito grande de mulheres, devido à causa dela. Ela foi à frente do tempo dela. Revolucionária em tudo. [...] Ela surge com uma visão diferente, de que as mulheres não precisam estar só atrás do homem. Ela pode ser muito mais que isso", disse.

Lagolândia: a criação de um povoado

Povoado de Lagolândia, em Pirenópolis

Yanca Cristina/g1 Goiás

Devido à influência política conquistada por Dica, ela conseguiu que em 1963 a região em que vivia com os seus seguidores, antes “Mozondó” e depois “República dos Anjos”, fosse emancipada como o distrito de Lagolândia, a terra das lagoas.

No local, ela realizou cerimônias de batismo e confirmações, em que a maioria dos nascidos a chamavam de “Madrinha Dica”. A terra era repartida para todos e o trabalho deveria ser realizado buscando o bem comum.

Dica iniciou a celebração de festas como Folia de Reis, São Sebastião, Nossa Senhora da Conceição, São Benedito, São João e Festa do Divino. Além disso, ela foi responsável por incentivar a educação na região. Atualmente, a escola municipal de Lagolândia carrega o nome dela: Benedita Cipriano Gomes.

A revolucionária morreu em Goiânia, em 1970. O seu corpo está enterrado na praça do povoado, em frente à “Casa da Dona Dica” e abaixo de uma gameleira, conforme o seu pedido. Até hoje o local recebe visitantes que fazem orações e prestam homenagens a ela.

O legado de Dica está presente no Instituto Santa Dica, presidido por Lucília Amaral. A iniciativa tem como objetivo relembrar a história e valorizar a memória de uma mulher que lutou por muitos, “curou” milhares e foi responsável pela criação de todo um povoado.

"Esse povoado só existe por causa dela. Tudo que tem aqui foi criado por ela, essa praça, essa igreja, as festas...", ressaltou a moradora do povoado, Maria Camargo.

De acordo com a sobrinha de Dica, mesmo diante à todos os feitos dela, ainda sim há resistência por parte da igreja e do governo de reconhecer a sua influência e participação política e comunitária. "Se Vó Dica foi perseguida brutalmente, vocês que falam dela vão receber doce? Ninguém vai receber flores por estar falando dela", questionou Brigitt.

"Estamos tentando fazer com que essa memória dela seja vista, não só aqui, mas em todo o estado de Goiás, que faça parte do currículo de história. Você não pode falar da história, sem falar da Vó Dica, que foi uma mulher naquela época que participou de revolução e foi presa politicamente [...] Deixou a família dela para viver por Lagolândia", reforçou.

Casa da Dona Dica, em Lagolândia

Yanca Cristina/g1 Goiás

📱 Veja outras notícias da região no g1 Goiás.

VÍDEOS: últimas notícias de Goiás

Anunciantes

Baixe o nosso aplicativo

Tenha nossa rádio na palma de sua mão hoje mesmo.