Governo teria de cortar gastos de forma robusta e achar saída para precatórios (dívidas judiciais) para manter arcabouço. Mesmo assim, economistas avaliam que uma nova reforma será necessária nos próximos anos. O projeto que o governo enviou ao Congresso para a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2026 explicitou, nesta semana, as dificuldades do arcabouço fiscal.
Segundo especialistas em contas públicas, as regras que foram aprovadas já no atual governo Luiz Inácio Lula da Silva ficarão insustentáveis se nada for feito nos próximos anos.
📈 O arcabouço fiscal é o conjunto de regras proposto e aprovado em 2023 para orientar os gastos públicos. Ele inclui uma sistema de metas e gatilhos para controlar o crescimento das despesas e, em tese, levar os cofres federais para um patamar sustentável de gastos.
Mesmo se optar por uma reforma – o que pode ser complexo do ponto de vista político, a essa altura –, será difícil salvar o arcabouço diante do forte ritmo de crescimento dos gastos obrigatórios.
Esse ritmo é impulsionado, por exemplo pela política de aumentos reais (acima da inflação) do salário mínimo. O tema foi promessa de campanha do presidente Lula e é um dos pilares do seu governo.
Na prática, segundo especialistas, é como se o governo Lula tivesse feito duas promessas opostas:
➡️ de um lado, para acenar ao mercado e mostrar compromisso com as contas públicas, propôs o arcabouço fiscal – que, embora menos rígido que o teto de gastos, é uma ferramenta para limitar o gasto público;
➡️ do outro, ainda na campanha eleitoral de 2022, prometeu expandir investimentos em saúde, educação, habitação e em programas sociais – o que leva a um aumento do gasto público.
O pequeno espaço que o arcabouço fiscal deixa para a expansão da despesa (inflação + 2,5%) vem sendo consumido pelo chamado "crescimento vegetativo" dos gastos – relacionada com as promessas, entre elas, o aumento real do salário mínimo.
Em tese, só daria para criar novas despesas, a manter o arcabouço ativo, se o governo indicasse de onde vai cortar – o que não vem sendo feito na intensidade necessária.
Um economista experiente em política fiscal afirmou ao g1 que já "está contratada a necessidade de um ajuste estrutural", pois "medidas pontuais não serão suficientes no médio prazo".
"A dúvida é mais sobre 'quando' [será feita uma nova reforma fiscal]", concluiu.
Outro analista projetou a necessidade de mudanças já em 2027, primeiro ano do próximo governo.
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Sinal vermelho
Nesta semana, o governo acendeu um sinal vermelho na sociedade ao admitir que faltarão R$ 10,9 bilhões para os gastos discricionários do governo em 2027.
Com isso, não haverá recursos para investimentos e políticas públicas importantes, como o Farmácia Popular, a fiscalização do meio ambiente e até mesmo para pagar contas de água e luz de prédios públicos.
Esse cenário de possível "apagão" no governo está relacionado com a determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir o pagamento de precatórios por fora da meta fiscal a partir de 2027.
Mas também tem relação com a ausência de cortes robustos (considerados necessários para manter o arcabouço fiscal de pé) nos gastos obrigatórios.
O pacote de redução de despesas aprovado no fim do ano passado, argumentam os analistas, foi insuficiente.
Para abrir espaço para gastos livres (discricionários) nos próximos anos e tentar evitar a paralisia da máquina pública, o governo terá necessariamente de adotar ações.
Entre as possibilidades, estão:
propor (e conseguir) excluir os precatórios das metas fiscais, total ou parcialmente;
cortar gastos de forma robusta e não somente com "pente fino" em cadastros, como o BPC e benefícios previdenciários.
Entenda o que está acontecendo
Minisetérios podem ficar sem recursos para políticas públicas básicas
TV Globo/Reprodução
A explicação para o colapso, no atual cenário para as contas públicas, tem a ver com o limite para gastos criado pelo arcabouço fiscal.
A regra para as contas públicas prevê que a maior parte das despesas do governo pode crescer, no máximo, 2,5 pontos percentuais acima do ritmo da inflação.
Entretanto, os gastos obrigatórios, que têm regras específicas fixadas em leis, continuarão crescendo nos próximos anos acima de 2,5% (limite do arcabouço) – o que acabará com o espaço existente para as despesas discricionárias dos ministérios, os gastos livres.
Os gastos obrigatórios, que seguem crescendo, são:
previdenciários, como aposentadorias e assistência, estimados em mais de R$ 1 trilhão em 2025;
com servidores (R$ 413 bilhões neste ano);
com seguro-desemprego e abono salarial;
alguns tipos de emendas parlamentares;
gastos mínimos em Saúde e Educação.
O governo admitiu que, a partir de 2027, não haverá recursos para nenhuma dessas políticas públicas executadas com gastos livres (discricionários). Veja exemplos:
verbas para a defesa agropecuária;
bolsas do CNPq e da Capes;
investimentos em infraestrutura;
Pronatec;
emissão de passaportes;
programa Farmácia Popular;
bolsas para atletas;
fiscalização ambiental e do trabalho, entre outros.
O que dizem os especialistas
Para Marcus Pestana, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, o país caminha para um "estrangulamento orçamentário", com déficits das contas públicas, crescimento do endividamento, baixíssimo nível de investimentos e "despesas obrigatórias sufocando as discricionárias".
"A partir de 2027 fica insustentável. O próximo presidente da República terá um encontro inevitável com uma profunda reforma fiscal (...) E a coisa fica mais grave ainda ao percebermos que não estamos estancando o crescimento da dívida e as despesas discricionárias estão despencando, onde se encontram os investimentos estratégicos para o futuro do país", declarou Pestana, da IFI.
Paulo Bijos, consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados e ex-secretário de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, que previu o cenário de "paralisia" da máquina pública em 2027, concorda que o arcabouço fiscal, no atual cenário, é insustentável.
"Para ser sustentável, o arcabouço fiscal precisa, no mínimo preservar o espaço discricionário [para gastos livres do governo] do orçamento. Para isso, é necessária uma reforma estrutural robusta com ênfase na desindexação e na desvinculação do gasto público", declarou Bijos.
📊 Desindexar significa desfazer algumas das regras que vinculam salários, benefícios e outros gastos ao crescimento do salário mínimo ou da inflação.
📊 Desvincular, em geral, é a ideia de retirar o vínculo que existe hoje entre algumas receitas e algumas despesas. Para citar um único exemplo, a lei obriga o governo a destinar 20% do IPVA (imposto sobre veículos) para o Fundeb, fundo que financia a educação básica do país. E obriga o governo a destinar fatias específicas do orçamento para saúde, educação e segurança.
De acordo com Jeferson Bittencourt, head de macroeconomia do ASA e ex-secretário do Tesouro Nacional, a inclusão dos precatórios na meta fiscal em 2027 só irá expor mais rapidamente a incompatibilidade do limite de gastos com as regras de crescimento das despesas obrigatórias que foram criadas.
Essas regras incluem a política de valorização do salário mínimo e a retomada das regras dos mínimos constitucionais da saúde e da educação, entre outros.
"Ainda assim, para conseguir reestabelecer em 2027 este nível de discricionária previsto para 2026, seria necessário que o governo apresentasse um pacote de corte de obrigatórias de três vezes maior do que foi apresentado em dezembro de 2024. Se este é o esforço necessário para alcançar um nível mínimo de despesa discricionária que combine as necessidades da máquina e o cumprimento das regras, é mais provável que se reveja as regras [das contas públicas] do que se alcance tal esforço", afirmou Bittencourt, do ASA.
Para Gabriel Barros, economista-chefe da ARX Investimentos, ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, o arcabouço fiscal "não para de pé".
"Há uma inconsistência matemática da regra fiscal, que desde a sua origem vem sendo cumprida por meio de operações contábeis questionáveis. O PLDO 2026 apenas explicita o que a mediana do mercado e nós, na primeira hora, alertamos sobre os problemas da regra fiscal proposta, que não é ótima, tampouco crível. Mesmo para 2026, há risco relevante de shutdown, dado o nível do gasto discricionário. O PLDO 2026 tem um divórcio grande com a realidade macroeconômica do país, carece de realismo fiscal", avaliou Barros, da ARX Investimentos.
Posição do governo
Nesta semana, o secretário de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Clayton Montes, disse que o governo precisará adotar novas medidas para "aprofundar a revisão de gastos de despesas obrigatórias" para tentar impedir a paralisia da máquina pública em 2027.
"O governo tem trabalhado nesse ponto, busca alcançar a eficiência nas principais despesas do Poder Executivo, como BPC, Proagro, benefícios previdenciários. São políticas que estão no foco da necessária revisão de gastos que o Poder Executivo vem empreendendo", declarou o secretário, nao ocasião.
Mesmo prevendo um cenário desafiador para 2027, o governo não propôs, na LDO do ano que vem, cortes relevantes em gastos obrigatórios — algo considerado necessário para manter a sustentabilidade do arcabouço fiscal.
O g1 entrou em contato com o Tesouro Nacional, responsável pelo projeto do arcabouço fiscal, e questionou:
se o governo pretende enviar uma proposta de retirada dos precatórios, ou parte deles, da meta de primário,
se pretende fazer um corte robusto de gastos obrigatórios e
se a atual regra para as contas (arcabouço) é sustentável.
O governo não respondeu até a última atualização dessa reportagem.
Entenda o arcabouço fiscal em números
g1