Patrícia Campassi tomou a decisão drástica de tirar o filho da escola, ao observar que Lorenzo, de 9 anos, não tinha a atenção que precisava. g1 ouviu especialistas para explicar empecilhos para escolas mais inclusivas. Ser Acessível: Barreiras na educação fazem mãe tirar filho com microcefalia da escola
A legislação brasileira determina que, para além da matrícula em escolas regulares, crianças e adolescentes com deficiência recebam apoio para participar ativamente e aprender. Mas o g1 reuniu histórias e ouviu especialistas que revelam barreiras no caminho que separa a previsão legal e a acessibilidade na prática em instituições de ensino.
Desafios, segundo os especialistas, vão desde questões urbanísticas e arquitetônicas, como rampas e banheiros adaptados, a pedagógicas, comunicacionais e atitudinais. Esta última é apontada como a mais difícil de eliminar.
“A mais impossibilitadora é, de fato, a atitudinal, o que chamamos de capacitismo. O preconceito com relação às pessoas com deficiência é o que mais impossibilita uma maior participação, seja na escola, seja na sociedade, e, consequentemente, é limitadora do próprio desenvolvimento humano das pessoas com deficiência”, explica Régis Henrique dos Reis Silva, professor da Faculdade de Educação da Unicamp.
Barreiras impedem a inclusão
Especialista em educação especial, Tathiane Rubin Rodrigues Cuesta avalia que deduzir que uma pessoa com deficiência não tem capacidade de aprender, sem oferecer ferramentas adequadas às suas necessidades, mostra-se como um empecilho no caminho da inclusão, e essas barreiras fazem com que crianças sejam deixadas de lado nas escolas ou impedidas de realizar atividades comuns para todos os estudantes.
"Incluir não é apenas adaptar o aluno à escola, mas transformar a escola para todos. Trata-se de romper com a lógica de integração, na qual o aluno deve se ajustar a um padrão, e adotar práticas pedagógicas que se flexibilizam para responder às singularidades de cada estudante. Isso exige formação docente contínua, reestruturação curricular, colaboração entre profissionais e envolvimento da comunidade escolar", diz Tathiane.
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Na avaliação de Andreia dos Santos de Jesus, professora com foco em processos inclusivos, a educação acessível precisa ser tratada como um compromisso em que cada vez mais esteja na escola quem tem direito de estar nela, em um sistema que ainda “pensa muito pouco sobre todos”.
“Vamos ter que lutar por esse compromisso, para que a escola seja um espaço que cabe mais do que a gente está acostumado a pensar. Costumeiramente a gente lida com a ideia de que o aluno tem que se adaptar, ‘correr atrás do seu atraso’. A gente está dizendo o contrário. Primeiro, que não seja visto como atraso, mas como a condição que aquele sujeito tem para estar ali naquele momento. E com essa condição, o que a gente é capaz de, junto com ele e com os outros, de criar. A grande angústia hoje é como a gente garante essa permanência com qualidade para todos os envolvidos”, pontua Andreia.
Nesta reportagem da série "Ser Acessível', coprodução do g1 e EPTV que aborda questões sobre a educação para crianças e adolescentes com deficiência, veja abaixo exemplos de como barreiras atrapalham o processo educacional.
Abaixo você vai ler:
Fora da escola
Escadas no caminho
Eliminando barreiras
É preciso estar 100% acessível para incluir?
#paratodosverem: Patrícia Campassi olha com ternura, bem de perto, o filho Lorenzo, que também olha para ela
Ricardo Custódio/EPTV
Fora da escola
Na casa de Patrícia Pereira Campassi, de 30 anos, as barreiras na educação fizeram Lorenzo, de 9 anos, deixar a sala de aula no início do ensino fundamental.
Com microcefalia, Lorenzo tem restrições de movimento e é uma criança não oralizada, ou seja, que não fala.
A mãe sabe pelo olhar, sempre curioso, e pelas sutis reações o que o filho sente e tem a dizer, mas sem o acompanhamento adequado na escola, tornou-se apenas espectador do desenvolvimento de outros alunos.
Depois de viver um período de acolhimento e bons resultados no ensino infantil, eternizado em fotos que guarda com muito carinho, Patrícia deixou de ver lógica em mandar o filho para a escola - embora ainda tente retomar, desde que de forma realmente acessível, a rotina de Lorenzo à educação regular.
🕰️ Dedicação 24 horas por dia. Mãe de outras duas meninas, sem poder contar com esse período na escola junto das outras filhas, dedica-se em tempo integral aos cuidados de Lorenzo.
“Na educação infantil, ele era o único [com microcefalia] lá na escola, ele tinha uma atenção, um afeto. As crianças eram apaixonadas [por ele], as cuidadoras também. Da maneira dele, eu recebia essa informação de que ele estava sendo bem cuidado. Estava contente, sorrindo bastante, e isso que me deixava tranquila”, recorda a mãe.
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#paratodosverem: Vistos de longe, numa sala, Patrícia Campassi e Lorenzo, na cadeira de rodas
Ricardo Custódio/EPTV
O cenário mudou quando Lorenzo, perto de completar 7 anos, seguiu para o 1º ano do ensino fundamental na Escola Municipal Professora Violeta Dória Lins, na Vila Rica, em Campinas (SP).
“Eu fui com uma expectativa pelo o que ele tinha passado anteriormente, e foi uma grande decepção. O Lorenzo precisa de um aprendizado diferente, e não era isso que eu via. Ele ia para a escola mais para socializar do que para aprender ou desenvolver dentro das necessidades dele. A meu ver, olhando para o meu filho, ele precisa aprender todos os dias. Eu talvez tenha ficado decepcionada de acharem que incluir o Lorenzo era só ele estar ali, mais um número”.
Não senti que ele estava pertencendo ao lugar, ele não estava sendo visto de verdade”
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Como Lorenzo se sentia? Patrícia ressalta que sabe que é direito de Lorenzo frequentar a escola, mas destaca que o filho demonstrava chateação pela situação, além do cansaço de ficar na cadeira de rodas o período todo, e que avaliou que cuidar dele integralmente era a melhor solução.
“A gente encontra diversas barreiras, desde achar uma cuidadora que saiba o que ele precisa, o transporte. Se o período da escola é das 7h às 11h, ou vai mais cedo ou sai da escola mais cedo, porque o número de peruas é pequeno e a frequência de crianças é maior. Tudo é uma luta, é barreira atrás de barreira, é tão cansativo. Eu como mãe olhei e falei: fica comigo, porque eu sei que posso dar o melhor. Apesar de ser um direito dele, na real não é tão lindo como se fala. Falta muito entendimento, muita atenção, de olhar e falar: vamos ver o que ele precisa e incluir de verdade.”
E o que a prefeitura fala? Questionada sobre o caso de Lorenzo, a Secretaria Municipal de Educação de Campinas informou que o aluno encontra-se matriculado atualmente na rede estadual, e pontuou sobre ações adotadas para ampliar a efetividade do atendimento da educação especial na rede.
Segundo a pasta, a partir de 2025 o Núcleo de Educação Especial e os professores de referência produziram um documento, preenchido pelo professor de educação especial e demais docentes, para todos os alunos público-alvo da educação especial, onde devem ficar evidenciadas as informações importantes sobre os alunos, suas vivências, facilidades, desafios, especificidades e quais as barreiras do contexto que devem ser eliminadas para o acesso, acolhimento e participação efetiva na escola.
"Os professores devem indicar quais recursos necessários para garantir a acessibilidade, com o planejamento de ações e profissionais envolvidos. Com isso, o acolhimento dos alunos público-alvo da educação especial é cada vez mais efetivo", destaca.
#paratodosverem: Detalhe da mão de Patrícia Campassi, mãe de Lorenzo, segurando a pequena mão do filho
Ricardo Custódio/EPTV
Escadas no caminho
As barreiras não são eliminadas com a matrícula e permanência do aluno na escola. Mesmo quando há ações para inclusão, como material adaptado e rede de apoio em sala de aula, alguns estudantes ainda são cerceados de direitos básicos, como ir à quadra de esportes, por exemplo.
Na Escola Municipal Padre Leão Vallerie, no Parque Valença 1, em Campinas (SP), o sorridente Pedro Henrique Domingues, de 13 anos, apesar de apaixonado por esportes, não consegue acessar a quadra do colégio.
👨🦽➡️Diagnosticado com a síndrome de Perisylvania, que afeta parte de sua coordenação motora, Pedro usa cadeira de rodas a maior parte do tempo na escola, mas também utiliza um andador. No entanto, não consegue fazer as aulas de educação física na quadra - acessada apenas por uma escada estreita.
“É muito triste isso porque o Pedro gosta muito de esportes. Ele não conseguir participar das aulas de educação física na quadra chega a ser um absurdo", afirma Priscila Santos Pedreiro, mãe do aluno.
#paratodosverem: Na escola, Pedro Domingues na cadeira de rodas, com as mãos apoiadas sobre a roda. Ele está próximo a escada
Estevão Mamédio/g1
E quando a escola vai ter acessibilidade total? Segundo Priscila, na última vez em que esteve na unidade de ensino, foi informada sobre a realização de uma reforma, mas ela lembra que a escola é antiga, e isso já deveria ter ocorrido há tempos.
"Eles improvisam as aulas de educação física para o Pedro que é cadeirante, mas o certo seria ele participar com todos os alunos na quadra”, diz a mãe.
Diretor em exercício da escola Padre Leão Vallerie, Marcos Moura informou que a reforma programada a partir de julho, onde alunos serão realocados em outro prédio, vai mexer principalmente com telhado e parte elétrica, para permitir instalação de ar-condicionado, e não previa, incialmente, resolução de questões de acessibilidade como a escada para a quadra e para algumas salas.
“A gente vai fazer essa indicação, de aproveitar que gente não vai estar no prédio, que essas questões de acessibilidade sejam também implementadas, como acesso à quadra e às salas 12, 13 e 14, que tem uma escada. Vamos fazer essas indicações e esperar que a Secretaria atenda”, disse Marcos.
Procurada, a Secretaria de Educação de Campinas informou apenas que está no projeto de reforma da escola "contemplar a acessibilidade".
#paratodosverem: Na escola, Pedro Domingues, visto de costas, está em sua cadeira de rodas parado, na frente de uma longa escada
Estevão Mamédio/g1
Eliminando barreiras 🧱
Quando as barreiras são identificadas e eliminadas, a inclusão começa a ocorrer de fato. Na Escola Estadual Professor Luiz Gonzaga Horta Lisboa, em Campinas, a chegada da estudante Amelie Segantini provocou uma transformação.
Memê, como é conhecida, narra um histórico de problemas na escola anterior, onde não se sentia acolhida e tinha dificuldades para acompanhar as matérias. Mas atualmente se vê incluída e feliz, a partir de ações simples, como uma escuta ativa, por exemplo.
#paratodosverem: Numa calçada, a adolescente Amelie Segantini em sua cadeira de rodas motorizada. Ao lado, sua mãe, Keila Costa, caminha sorrindo
Ricardo Custódio/EPTV
A importância da escuta ativa! Para entender o que seria necessário para incluir, a escola abriu espaço para ouvir e descobrir, com profissionais que atendiam a estudante, as características e necessidades de Memê. E isso fez toda a diferença.
“Minha antiga escola não recebeu pessoas que me conheciam. Aqui as terapeutas foram recebidas de braços abertos. Minha fisioterapeuta deu uma palestra. Tenho ajuda para o material, também tenho uma professora de apoio”, conta a estudante, atualmente no 9º ano do ensino fundamental.
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Ações que vão de encontro ao que defende Guilherme Bara, consultor e palestrante sobre diversidade, que tem deficiência visual desde a adolescência.
Bara afirma que a inclusão precisa ser discutida de forma mais ampla, e que esse processo no período escolar é essencial para a formação de uma sociedade mais respeitosa e capaz de conviver com diferenças de forma saudável.
“Se a gente perguntar às pessoas qual é o tema mais importante numa sociedade, é a educação. Se é a educação, é educação para todo mundo? A reflexão que a gente precisa fazer é quem cabe dentro desse todo mundo? É tudo mundo mesmo, ou é todo mundo desde que não tenha deficiência, não tenha isso, não tem aquilo. Qual é o nosso conceito de todo mundo? Será que ele é inclusivo ou ele é excludente?”, indaga.
#paratodosverem: Amelie Segantini na sala de aula, junto a outros alunos, na frente de uma mesa com um notebook. Ao lado dela, uma professora de apoio escreve em um caderno e Amelie a observa
Ricardo Custódio/EPTV
É preciso estar 100% acessível para incluir?
Segundo Bara, ao escolher incluir é preciso que se pense em condições para que o aluno possa estar e usufruir da escola, mesmo que ainda os espaços não estejam prontos para que isso aconteça, pois é a presença dele que acelera o processo.
“Muito pensam: ‘Guilherme, acho lindo o que você está falando, mas a minha escola não está pronta’. Se você for esperar estar pronto para incluir, você não vai incluir nunca, porque nunca vai estar perfeito. Vai ser a presença do aluno com deficiência na escola que vai acelerar esse processo, que vai fazer a gente reparar naquele degrau, naquela falta de acessibilidade na comunicação para um deficiente auditivo, na falta de material adequado para se comunicar com uma pessoa que eventualmente esteja dentro do espectro autista. Então é a presença que acelera esse processo”, completa.
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O que diz a prefeitura de Campinas?
Questionada sobre as questões envolvendo a antiga escola de Amelie, e quais ações são desenvolvidas na rede para promover a inclusão, a Secretaria Municipal de Educação (SME) de Campinas informou, por nota, que possui professores de educação especial em todas as escolas que articulam os processos inclusivos, e que temas como o capacitismo são tratados em formações.
Veja a nota na íntegra:
"Para promover a acessibilidade dos alunos público-alvo da EE, temos professores de Educação Especial em todas as escolas, que articulam os processos inclusivos, junto ao coletivo da escola, avaliando as necessidades de adaptações e recursos humanos e materiais, para eliminação das barreiras existentes. Assim, o fazer dos profissionais da Educação e da Educação Especial implica em construir estratégias de inclusão e acessibilidade, inclusive com parcerias intersetoriais e com as famílias.
"Existem muitas ações formativas que são anualmente ofertadas na rede municipal de ensino, com vários profissionais envolvidos, muitas delas focando as questões da Educação Especial: grupos de trabalho com os novos professores, ações formativas com Orientadores pedagógicos e equipes gestoras, reunião mensal com professores de Educação Especial, dentre outras. O capacitismo, inclusive, foi tratado em reunião com professores de Educação Especial e os materiais desta formação, produzidos por um professor de Educação Especial, foram disponibilizados para formação nas escolas.
O Núcleo de Educação Especial realiza, periodicamente, ações formativas pontuais junto aos profissionais da Secretaria Municipal de Educação, abordando a concepção social da deficiência, a necessidade da eliminação das barreiras existentes e o desenho universal da aprendizagem, dentre outros assuntos pertinentes à Educação Especial e à política da inclusão. A SME conta, ainda, com o Cepromad, Centro de Produção de Materiais Adaptados, que garante a acessibilidade necessária para muitos alunos".
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